2. um quarto de hospital com vista para o cemitério
essa é a segunda parte da saga da minha cirurgia da anca. se você ainda não leu a primeira parte ou se já leu, mas perdeu o fio da meada porque o capitalismo fritou nossas células cerebrais com torrentes de pânico e excesso de informação, pode ler aqui. resumidamente:
depois de idas e vindas com uma dor crônica e pulsante na virilha esquerda, decidi fazer a tal da artroscopia e a cirurgia ficou agendada para outubro de 2020. comecei a me preparar mentalmente nos princípios de outubro, fizemos uma compra grande de supermercado, congelei muitos vasilhames de sopa e o hugo ficou encarregado de cuidar de mim, dos nossos lindos pets e nos agraciar com seus talentos culinários durante os dias da minha recuperação. tudo parecia relativamente tranquilo e eu estava animada com a belíssima chegada do outono. só faltava a aprovação do plano de saúde, mas como eles costumam ser rápidos achei que não fosse caso de ficar preocupada. inocência minha.
o dia da cirurgia estava cada vez mais próximo e nada de ter uma resposta da seguradora. faltando menos de uma semana a secretária do médico me ligou para alinhar uns pormenores e eu aproveitei para perguntar o que estava acontecendo com a aprovação do seguro. ela disse que tinha mandado tudo direitinho com mais de um mês de antecedência e recomendou que eu mesma ligasse lá porque ela ia tirar uns dias de férias. e foi aí que uma pequena saga dentro da saga começou. por causa da pandemia as linhas de telefone estavam mais congestionadas fazendo com o que o tempo de espera praticamente inexistente de antes tivesse virado 30 a 40 minutos até conseguir falar com alguma pessoa, explicar toda a situação, ser transferida para outra pessoa, explicar tudo de novo e assim por diante até que meus cabelos começassem a cair de desespero e a dermatite deixasse a minha cara descamada e em chamas. pedi urgência no processo, já que iria operar dali a uns dias e ainda precisava me preparar, descansar, comprar muletas, fazer o teste da covid e ainda ter cuidado redobrado para evitar ser contaminada. no dia seguinte, sexta-feira, fim do dia, recebo um e-mail de uma gestora de contas dizendo que eu precisava apresentar mais documentos sem dizer exatamente quais e eu, sem poder saber quais a secretária tinha enviado, mandei tudo que tinha, só pra depois me dizerem que já tinham os mesmos documentos. passei o final de semana inteiro estressadíssima praguejando o neoliberalismo e a privatização da saúde, querendo que cada centavo de lucro que essas pessoas fazem se transforme em moléstia eterna e pensando que deveria ter seguido o conselho de uma amiga e tentado fazer a cirurgia pelo SNS.
tendo crescido no brasil nas décadas de 1980 e 1990, um país cuja constituição de 1988 garante que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”, mas cujos gastos das famílias atestam o contrário, sustentando uma indústria que movimentou 231 bilhões de reais entre 2010 a 2017 (segundo a EBC), não posso dizer que a confiança no sistema público de saúde seja um sentimento presente na minha vida. meu pai é funcionário aposentado do banco do brasil e, dentre seu rol de benefícios laborais, tem direito a um plano da cassi – o primeiro seguro de saúde oficial brasileiro. embora a constituição dê a garantia de saúde universal, ela também dá uma pequena brecha para a prestação desses serviços por “pessoa física ou jurídica de direito privado”, que por sua vez devem ser fiscalizados pelo Estado. bem sabemos que as coisas não funcionam assim com essa celeridade no campo fiscalizatório, sobretudo depois da explosão neoliberal que chegou chegando com alegria pela mão dos novos governos democráticos do brasil. crescemos com a mentalidade de que tudo que é privado é melhor, porque os equipamentos norte-americanos são melhores, as pessoas que estudam medicina nos estados unidos e em faculdades particulares no geral são melhores e enfim, quem tem dinheiro é melhor do que quem não tem. em março de 2020 o brasil tinha 727 seguradoras e o número de usuários chegou a 47 milhões de pessoas segundo a ANS.
quando me mudei para portugal, mesmo ouvindo coisas positivas sobre o SNS em comparação ao SUS, acompanhei também amigos e conhecidos esperando meses por marcações de consultas e exames, reclamando do atendimento precário, grosseiro e, em alguns casos, abusivos. fiquei quatro anos sem ir a consultas, tendo só feito uns exames de sangue quando fui de férias para o brasil. quando comecei a estudar a imigração de mulheres brasileiras em portugal, li um estudo que detalhava a relutância de imigrantes do brasil e dos PALOP em buscarem ajuda médica, sobretudo ginecológica, por causa da possibilidade de serem vítimas de racismo e consequentemente sofrendo de problemas graves, como evolução desnecessária de quadros comuns para condições agudas e crônicas. uma amiga recomendou um ginecologista caríssimo e eu, com aquele tipo de pensamento enraizado de que tudo que é caro é bom, fui. a primeira coisa que ele me perguntou quando viu que eu era brasileira foi se eu era casada com um português, no que eu respondi que meu namorado era, sim, e ainda fiz uma brincadeira dizendo que eu tinha nacionalidade por parte de pai e que freud explicava, tentando assim me afastar do estereótipo em que ele tinha me metido. ele ignorou e prosseguiu me perguntando se eu sabia que a culpa da colonização era afinal de uma mulher, que se não fosse a ana bolena ou sei lá quem – nesse ponto eu já tinha parado de prestar atenção – os brasileiros não existiriam, todo bonachão na sua cadeira sofisticada atrás da mesa enorme de madeira simbolicamente feita de pau brasil. depois ainda teve a desfaçatez de perguntar se eu já tinha sido “gordinha” porque tinha estrias. eu estava despida de pernas abertas apoiadas no estribo. deixei uns 150 euros na recepção e fui embora chorando, ignorando por mais muitos meses os exames de rotina que deveria fazer. depois disso resolvi fazer um plano de saúde particular, porque se era para pagar que pelo menos fosse uma porcentagem do valor total, e fui tentar encontrar uma médica feminista. acabei caindo no buraco sem fundo dos grupos de facebook e ainda me deparando com mais não sei quantos relatos de xenofobia e racismo tanto no público quanto no privado. a constituição portuguesa prevê que todos têm direito à proteção da saúde através de um serviço nacional de saúde universal e que é prioritariamente de responsabilidade do Estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. o lucro anual da indústria da saúde privada em portugal – que recebe aportes financeiros do Estado – gira em torno de 1 bilhão de euros segundo um estudo encomendado pelo banco millenium bcp em 2017.
interpretações de textos constitucionais e suas aplicações reais à parte, consegui falar com a secretária do médico na segunda-feira depois de ter ido fazer o teste da covid sem saber se era preciso mesmo e já comprado as muletas, mas ela não podia falar comigo porque a avó tinha falecido. são nessas circunstâncias que a gente consegue testar se tem mesmo o bom caráter e a empatia que imaginamos que temos, porque sem querer correr o risco de parecer uma personagem de sitcom autocentrada que acha que tudo de errado no mundo acontece só com ela enquanto a plateia falsa morre de rir, eu não sabia qual era a etiqueta para uma situação dessas. disse “meus sentimentos”, ela agradeceu e prosseguiu me explicando que se o seguro não aprovasse a cirurgia eu teria que deixar uma caução de 10.800 euros no hospital e que eu deveria continuar tentando falar com o plano. pedi desculpas pelo incômodo e passei os próximos dois dias ligando sem parar para a seguradora, falando com diversas pessoas diferentes, fazendo uma queixa formal no livro de reclamações porque o tempo de resposta previsto em contrato tinha sido ultrapassado, trocando muitos e-mails cheios de anexos, até que recebi uma mensagem de texto com a confirmação da aprovação da cirurgia às cinco da tarde da terça-feira – eu tinha que estar no hospital às seis da manhã do dia seguinte. reli o sms não sei quantas vezes para ter certeza de que estava tudo certo, arranjei minha mochilinha com o chinelo de quarto e a calça de moletom que comprei exclusivamente para a ocasião, tomei banho com a esponja antisséptica pré-operatória e fui dormir com o despertador programado para às cinco da manhã. pulei da cama, tomei mais um banho com a tal esponja antisséptica e lá fui eu a pé para o hospital cantando “o meio dia acontecendo em pleno sol/seguido da manhã que correu/desde muito cedo e que só viram/os que levantaram para trabalhar/no alvorecer que foi surgindo” e levando minhas muletinhas debaixo do braço. estava tranquila por estar sozinha. algumas pessoas me perguntaram se isso não me angustiava, já que por causa da pandemia vetaram a presença de acompanhantes. eu até achei que pudesse ficar mais aflita, mas depois da quantidade de coisas que já fiz sozinha ao longo da vida, dentre elas mudar de país carregando uma mala de 30kg, e de pensar que eu estava fazendo uma cirurgia eletiva no meio de uma pandemia em que as pessoas estão morrendo sozinhas, passar um dia e uma noite num hospital sem companhia parecia o menor dos problemas. nem sempre é fácil encontrar o limite entre ser indivíduo ou fazer parte do coletivo sem moralizar excessivamente a questão ou sem desenterrar uma tonelada de culpa.
passei um tempo considerável rodando o hospital deitada numa maca, esperando aqui e ali. uma auxiliar de enfermagem veio me perguntar se eu estava com frio e me trouxe um lençol aquecido. fiquei com os olhos cheios d’água, comovida com a simplicidade do gesto e com o carinho dela ao me aconchegar no lençol quentinho dizendo, “é pouca coisa, mas sabe tão bem, não é?”. agradeci e fiquei quietinha esperando o médico, ouvindo as conversas das pessoas que passavam por mim, pensando nas mulheres que fazem esse trabalho de oferecer conforto e por que é delas esse trabalho. chorei um pouquinho também porque percebi o quanto precisava desse conforto, do quanto é monumental ser aconchegada por alguém, de como isso vai bater lá no fundo dos meus questionamentos sobre mim, sobre o que eu estou fazendo aqui e o que eu realmente quero da minha vida: embrulhar meu corpo todo num lençol quentinho? depois chegou o médico, o anestesista, me levaram para o bloco operatório e eu vi muito mais gente do que julgava ser necessário para esse tipo de procedimento. o anestesista se apresentou, disse o nome super comprido completo, o que me fez pensar que ele era um jovem beto – ou seja (generalizando), faz parte do grupo de pessoas que viajam para o estrangeiro para estudar medicina porque têm dinheiro e seis sobrenomes – perguntou meu peso, minha altura e depois disso, puf, eu dormi. acordei assustada dizendo “não, não, não”, porque estava mergulhada numa sonequinha gostosa e achei que estavam me acordando sem necessidade. fiquei umas horas em observação com um saquinho de morfina na veia, dormitando e vendo o dia passar pelo relógio da sala coletiva. a cirurgia em si, tão antecipada, só dura o tempo de um cochilo.
fui para o quarto quando a tarde já ia avançada. tinha uma televisão acoplada à cama, tipo um bracinho articulado que me permitia ir vendo os programas e noticiários da TV aberta. o foco do dia era a querela entre cláudio ramos & cristina ferreira e o apoio do papa ao casamento homossexual, com ambas as problemáticas alternando nos diversos quatro canais que pegavam na televisão-braço. à noite, enquanto mordiscava uma bolacha maria para não vomitar, tive a sorte de ver uma entrevista com o andrea camilleri na RTP2 – este magnífico canal que deve ser protegido a qualquer custo. camilleri é um escritor italiano famoso pela série de detetives comissário montalbano. ele contou sobre a relação com o pai, com a escrita, com o significado de ser siciliano e também com a noção da própria morte. neste ponto, quando perguntado sobre o medo de morrer ele diz algo como: todos nós nascemos com um bilhete que determina que vamos nascer, vamos crescer, viver, amar e eventualmente morrer; não adianta querer fugir dessa sequência que já está pré-determinada. fiquei muito emocionada, porque estando numa cama de hospital com vista para o cemitério, é inevitável não pensar nos limites do meu corpo, em tudo que meu corpo viveu desde que nasci e em tentar entender o que eu estava fazendo ali. meu bilhete invariavelmente já continha a origem desse osso torto e esquisito que, junto com as diversas atividades que desenvolvi, mas sobretudo as que não devo ter desenvolvido muito bem, viria a me colocar nessa cama e nessa situação. como pensar na própria saúde (ou falta dela) sem cair numa lógica de punição? ouvindo um homem de 80 e tal anos falar sobre a tranquilidade de se descobrir escritor depois de já ter feito tudo que queria, se posicionado politicamente como queria sem dever nada a ninguém e saber tranquilo que a morte já estava vindo, respirei de alívio em sentir que posso escrever só porque sim.
passei a madrugada dormindo e acordando por causa do xixi e da ansiedade de ter que fazer xixi na comadre sem poder levantar a perna. provavelmente a atividade mais anti-natural que já pratiquei na vida, que deve ativar partes do cérebro como as palavras cruzadas e sudoku, mas com a diferença de que ao invés de preencher palavras e números numas caixinhas, eu tinha que fazer xixi de baixo para cima. a auxiliar de enfermagem da madrugada era jovem e parecia não estar com muita paciência para me esperar na peleja das acrobacias urinárias e a auxiliar de enfermagem da manhã, uma senhora maravilhosa e atenciosa chamada ana, deu um raspanete na colega por ter me deixado com a bunda colada no resguardo. a auxiliar ana – aprendi ali que o cargo deve estar sempre presente antes do nome: enfermeira patrícia, auxiliar ana e assim por diante, a formalidade dos códigos de conduta social em portugal nunca deixam de me surpreender – me ajudou a me limpar, apressou meu pequeno-almoço e ainda me deu uns pedaços de plástico e micropore pra quando eu fosse tomar banho em casa. mais uma vez fiquei com os olhos cheios d’água pensando nessa vida inteira dedicada ao trabalho reprodutivo de cuidar de outras pessoas, mas não só mecanicamente, porque a generosidade de oferecer carinho durante o processo de cuidado ultrapassa qualquer mecanicidade de gestos, sendo infelizmente naturalizada como parte integral da condição feminina. perto da hora do almoço, quando eu estava vendo um agradável programa sobre um americano que viajou o japão todo de trem, esse sonho, o médico chegou pra saber como eu tinha passado a noite e me dar algumas recomendações para os próximos dias. explicou que a artroscopia tinha sido um sucesso, disse que meu osso estava realmente com uma aparência terrível, cheio de fibroses ou coisas do gênero, que tinha uma forma muito invulgar e que ele tinha conseguido arredondá-lo conforme o previsto. depois foi me ensinar a caminhar esticando bem a perna para alongar o psoas, o músculo que basicamente sustenta o nosso corpo, e a cada passo que ele dava eu tinha que segurar o riso porque ele é alto e magro e aquele movimento me lembrava do ministry of silly walks. a vantagem é que agora sempre que vejo a caneca do ministry of silly walks que temos aqui em casa lembro que preciso alongar o psoas.
segundo o site waking times, especializado na relação entre corpo, mente e espiritualidade, o psoas é considerado o “músculo da alma” e a desatenção com ele pode ser responsável por estados crônicos de medo e ansiedade. eles explicam que o músculo conecta a espinha, o quadril, as pernas e o diafragma e tem uma ligação direta com a parte mais ancestral do nosso cérebro – o cérebro reptiliano. é no psoas, portanto, que acumulamos todo o stress e trauma a que estamos sujeitos, retroalimentando com a falta de cuidado o stress e o trauma e potencialmente desencadeando condições como a minha. volto mais uma vez para o lugar de punição. se eu adoeci foi porque não me cuidei, não me alimentei bem, trabalhei mais horas do que devia com posturas incorretas e consequentemente deixei também adoecer o meu psicológico. como sair desse lugar? não basta só ter um corpo, é preciso nutri-lo, limpá-lo, descansá-lo, amá-lo. mas um sistema-arapuca que usa o corpo como moeda de troca e nos ensina que o corpo deve ter um formato tal e servir a uma função tal até que a morte chegue não oferece propriamente uma saída. como diz a susan sontag sobre doença como metáfora, a lógica de punição e moralidade no discurso sobre as doenças e nossa tentativa de encontrar a raiz do problema em falhas individuais só agravam ainda mais o sofrimento que a própria doença já causa. essa proposta dela “contra a interpretação” é uma maneira de tentar integrar as doenças ao curso de uma vida e possivelmente tornar mais saudável a nossa relação com a própria morte. basta um corpo estar vivo para deixar de estar.
o médico recomendou um fisioterapeuta e poucos dias depois da cirurgia eu deveria iniciar essas atividades. o hugo foi comigo na primeira sessão porque não sabíamos quanta mobilidade eu teria para entrar e sair de um uber e ainda andar de muletas, e também porque eu estava insegura em relação ao fisioterapeuta. com o passar dos anos e experiências em portugal, fui desenvolvendo uma espécie de pânico e vulnerabilidade com os serviços de saúde, evitando sempre que possível estar totalmente sozinha em situações em que a minha nacionalidade brasileira seja trazida para a interação, como tantas vezes já aconteceu. eu andava relativamente tranquila porque depois de um ano lidando com processos da anca eu até então andava ilesa no quesito brasileira. mas saber que eu teria que ficar despida na fisioterapia já tinha ativado qualquer coisa no meu cérebro reptiliano. desde a primeira sessão ele afastava a minha calcinha para massagear os glúteos sem me pedir autorização. depois de terminar a massagem, ele puxava a calcinha para desenfiá-la do rego, estilingando o elástico dela na minha bunda. shpá. todos os dias eu saía de lá decidida a me manifestar sobre isso, todos os dias eu calava. um dia cheguei lá com a barriga muito roxa por causa das injeções de enoxaparina (indicadas para evitar a coagulação do sangue no pós-operatório) e o fisioterapeuta trouxe à baila aquilo que eu já esperava: “ora, mas você não se parece nada com uma brasileira”, me colocando assim imediatamente naquilo que a grada kilomba descreve como uma cena colonial. o que é uma brasileira segundo o fisioterapeuta? como reagir a isso estando semi-despida e vulnerável? expliquei que era portuguesa também como se tivesse que justificar a minha pele muito branca. ele não respondeu nada. continuei a falar, contei de onde era a família do meu pai. nenhuma resposta. uns minutos depois ele, como se nada fosse, começa a falar sobre a experiência gastronômica que teve no brasil, mais especificamente em são paulo. contou dos restaurantes, das padarias e lanchonetes, do sushi maravilhoso no rodízio de churrasco, a comida árabe, italiana, as milhares de opções de sucos de frutas. aceitei essa via da conversa, porque sinto tanta saudade dessa parte da vida em são paulo que foi mais seguro e menos desagradável prosseguir por aí do que enfrentá-lo e perguntar “com o que se parece uma brasileira?”. calar como forma de proteção dói tanto. na semana seguinte, já sem condições de continuar a me fazer de brasileira simpática e aceitar ele estilingando minha calcinha, tive uma crise de ansiedade. tirei a mão dele enquanto ele desenfiava a calcinha e depois não consegui mais respirar. fiquei enjoada, com vontade de vomitar. quando disse que não estava bem ele riu, acho que não entendeu, até que eu tive que levantar, minha pressão caiu e ele veio me segurar por trás, um gesto que me deixou com ainda mais pânico. fui embora para não voltar mais.
depois disso regredi. o bem estar que eu sentia por fazer os exercícios em casa, caminhadas e cuidado geral com a alimentação desapareceram. passei muitos dias na cama, às vezes sem tirar o pijama, comendo. o médico recomendou expressamente que eu fizesse natação, ameacei ir muitas vezes e até comprei um maiô e uma toca, mas acabei perdendo a coragem. armazenei outra vez o trauma no psoas e comecei a voltar ao padrão de uma existência pouco saudável. aproveitei essa fase de bruma para fazer muitas leituras: memórias da plantação da grada kilomba, doença como metáfora da susan sontag, hunger da roxane gay, the undying da anne boyer, the body keeps the score do bessel van der kolk, queenie da candice carty-williams, things i don’t wan’t to know da deborah levy e circe da madeline miller. todos esses livros acabaram por costurar as muitas ideias e emoções que estavam desorganizados em mim. o impacto que um assédio tem num corpo desencadeia um peso muito maior do que uma vida deveria ser capaz de sustentar, seja ele sutil, seja ele explícito. é uma forma de apagamento que determina que alguns corpos valem mais do que outros, que merecem mais respeito do que outros. percebi que vivi muitos anos tendo todos os meus limites ultrapassados graças a um mecanismo de defesa que me fazia calar quando eu poderia falar e permitia que eu sequer soubesse quais eram os meus limites. um corpo sem limites é um corpo disponível? e como eu achava que não tinha corpo, só cabeça, nunca aprendi muito bem a delimitar os meus próprios territórios.
sontag abre o doença como metáfora dizendo: “a doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar”. é sempre nessa zona limítrofe que eu vejo a minha vida, sendo saudável, sendo doente, sendo brasileira, sendo portuguesa, habitando ora um lugar ora outro, sem saber exatamente qual dessas condições vai se tornar permanente e como existir em todas ao mesmo tempo, sem saber até quando vou estar aqui, mas sempre teimando em continuar, insistindo em escrever. arrisco dizer que se não fosse o osso torto, o camilleri, as semanas de recuperação sem contato com nenhum tipo de trabalho e todas as responsabilidades domésticas que o hugo assumiu sozinho nesse período, a higiene mental proporcionada pela maratona de real housewives of beverly hills, e algum dinheirinho que tenho guardado, não estaria aqui empenhada em escrever uma longuíssima newsletter mensal só porque sim e, como diz a virginia woolf em um quarto só para si, determinada a “vestir o corpo que tantas vezes deixei de usar”.