olá, boas vindas à minha primeira tentativa de contar uma história por aqui sem vaguear muito. escolhi um tema um pouco peculiar para começar, mas é como dizem, precisamos falar sobre aquilo que nos é próximo. acho que poucas coisas nos são tão próximas como o próprio corpo, embora na maioria das vezes a gente tente ignorar que é no próprio corpo que a gente vive.
(quer um negocinho para ouvir enquanto aprecia a leitura? clica aqui, é uma playlist.)
no ano retrasado, quando estava arrumando a mala pra ir passar uma semana de férias no algarve, senti umas fisgadas doloridas na virilha esquerda. tinha começado a fazer academia há pouco mais de um mês e achei que pudesse ser de algum exagero nas aulas de cardio ao som de lambada e whitney houston da academia exclusiva para senhoras. durante a madrugada a dor foi aumentando e na manhã seguinte, no comboio, passei a viagem inteira com uma dor lancinante pensando que deveria ser a ciática, afinal: idade. foram dias pouco aproveitados, porque essa dor, até então nova pra mim, não permite maiores movimentos e ataca quando estamos sentados, quando estamos em pé, quando estamos deitados. enchi o rabo de antiinflamatórios e voltei pra lisboa mais cansada do que estava antes da viagem.
lindo pôr do sol algarvio para desfrutar enquanto se sente os laivos da dor na virilha
uma amiga recomendou uma ida urgente ao osteopata, porque ela também já tinha sofrido do mal da ciática (curiosamente viajando para o mesmo lugar -- ninguém diria que existe uma relação entre férias & doenças) e disse que esse tipo de tratamento fazia milagres. de modos que encontrei uma clínica que prestava esse serviço aqui no bairro mesmo e lá fui eu. firme e forte, semana após semana e o negócio não melhorava. a parte da inflamação estava sob controle porque arranjei um voltaren fortíssimo que quase me deu cabo do estômago, mas a dor continuava sempre que eu andava, sentava, deitava, e o rapaz da osteopatia me virava e me mexia. então ele disse que não tinha jeito mesmo, precisava marcar um ortopedista. foi aí que descobri que esse tipo de especialidade tem subespecialidades, e eu afinal tive que marcar uma consulta com um ortopedista especializado na região da anca. no brasil diríamos quadril, mas adoro que aqui em portugal dizem anca, soa um pouco arcaico, um termo usado no antigamente. melhor que isso era só dizer que é um doutor que trata das cadeiras. pensei: ok, esse é meu rito de passagem para a idade adulta, tenho um problema nas cadeiras.
na consulta, já com o exame manual feito, o ortopedista da anca me diz que, embora tivesse que averiguar com uma ressonância magnética, o que parecia é que eu tinha o fêmur mal-ajambrado, meio tortinho, que deveria ser redondinho e suave mas que travava na hora de girar. precisava averiguar, ele disse muitas vezes, mas basicamente não tinha jeito, não: precisaria operar. o que se seguiu é que fui lá fazer o tal exame. meia hora, quarenta minutos dentro de um tubo fechado sem poder me mexer. não posso dizer que foi um tempo bem passado, já que fiquei ali dentro pensando na minha mãe, que parece que é pra onde a gente corre quando tira doença na loteria. dentro da máquina era como se eu estivesse viajando muito errado numa rave futurista com música de baixa qualidade: batidas inconstantes, estalidos repetidos, um zunido ininterrupto, a voz da minha mãe dizendo "você não soube se cuidar sozinha", uma falta de ar horrorosa. mas depois veio o resultado e com ele a confirmação de que talvez eu tivesse nascido assim, talvez tivesse me acontecido com os hormônios da puberdade. o fato é que a cabeça do meu fêmur não encaixa bem no osso da minha bacia. o nome técnico, pra quem gosta de meticulosidades é: "conflito femoroacetabular".
nunca tinha ouvido falar nisso, mas de repente todo mundo conhecia alguém que tinha algum problema no quadril. seria mais útil se esse tipo de enfermidade fosse de conhecimento público, e talvez até seja e eu é que andei distraída, pensando aqui com meus botões em outros tipos de maleitas. tive que aprender a viver com a doença em mente -- não sei se posso chamar propriamente de doença, talvez possa chamar pelo que é: um defeito de fabricação, uma falha mecânica. não é bem uma condição que me impede de funcionar, mas certamente altera todo o meu funcionamento. comecei a me sentir como o próprio ivan ilitch. mas essa não é uma ruptura brusca com a condição de "saúde", é como se fosse uma rachadura pequena que de fora nem se nota muito, como um sinal de infiltração, mostrando que alguns dos canos talvez não estejam funcionando como deveriam, carcomidos pelo tempo e pelos excessos. ou pelas faltas, nesse caso. falta de atenção ao meu corpo, ausência de movimento, carência de vitaminas, uma espécie de alheamento, como se eu vivesse só dentro da minha cabeça e não ocupasse os demais membros.
a ideia de ir para a academia era justamente colmatar essa falta de cuidado. passei tantos anos fazendo terapia e esqueci que precisava cuidar do corpo, que parte do meu processo depressivo também tinha a ver com a falta de movimento físico. não é extremamente irônico que tenha sido na academia, esse ambiente quase sempre insalubre fantasiado de reino do autocuidado, que a boneca russa da anca torta resolveu dar as caras? eu acho. me inscrever na academia não foi um processo propriamente agradável. escolhi uma academia só de senhoras porque queria evitar os embates diários com homens e meu corpo vestido com roupa justa de ginástica como já me aconteceu outras vezes. afinal a pessoa que fez minha avaliação era um homem e ele presumiu que eu estava ali pra ficar gostosa: "bora lá ficar com o corpo de danone?!" (depois entendi que era uma fala de uma propaganda e que o frasquinho do iogurte imita a forma de um "corpo perfeito"). cancelar a academia, então, foi sutilmente desagradável, porque não sei se você já teve que cancelar uma inscrição em uma academia, mas mesmo quando eles prometem que vai ser fácil, nunca é fácil. a cara da senhora que fez o cancelamento da minha inscrição dizia muito mais do que qualquer coisa que ela pudesse articular em palavras. mesmo eu apresentando atestado médico e uma justificativa para lá de plausível, o olhar dela transmitia um ódio que eu imagino que só pessoas que trabalham, provavelmente por comissão, em academias que forçam as pessoas a ficarem inscritas devem sentir. é esse tipo de cuidado com o corpo que queremos? eu não.
contas feitas, achei que era melhor fazer a tal cirurgia. o doutor das cadeiras explicou muitas vezes que a operação não oferecia garantia de sucesso total, que eu precisava contar com cerca de 70% de melhoria, que poderia até chegar aos 90, mas nunca a 100. sempre que eu tentava, nas muitas consultas que tivemos, perguntar ou comentar qualquer outra coisa, ele fazia questão de repetir: nunca 100%. ficou claro que era uma maneira de evitar processos e reclamações futuras, mas também passou a ser um choque de realidade interessante: a partir daqui, minha amiga, é só ladeira abaixo, seu corpo atingiu o pico da saúde, da juventude e do viço, e já está na descida da curva. assinei uns papéis, deixamos a cirurgia averbada para final de abril, começo de maio.
e então veio a pandemia (frase que deveria ser consagrada como uma das mais ditas em 2020? certeza que todo mundo já disse isso). tive mais uma consulta com o médico um dia antes da pandemia ser oficialmente declarada, as pessoas no hospital já começavam a ensaiar o cumprimento com os cotovelos, ainda não precisávamos usar máscara, um senhor sentou ao meu lado na sala de espera e ficou 30 minutos pigarreando e jogando candy crush soda. o médico me ofereceu a mão quando entrei no consultório. no caminho de volta para casa, o cheiro forte das camomilas que nascem por conta própria num canteiro perto do hospital lembrava que a primavera já tinha começado a chegar. a cirurgia ainda continuava de pé, ninguém fazia ideia de quanto tempo a pandemia iria durar e qual seria sua verdadeira potência (já sabemos? acho que ainda não totalmente). depois disso as cirurgias e consultas eletivas foram canceladas, a gente passava os dias vendo estatísticas e notícias da pandemia, andando num estado limítrofe entre pânico e furor pela novidade. "olha só, o grande evento horrível que a gente andava esperando há anos finalmente chegou".
no dia 11 de março me apareceu o anjo da guarda mahasiah, que, dentre outras benesses, nos protege contra os maus hábitos do corpo e do espírito
e daí que eu, assim como certamente o mundo inteiro, tive que cancelar todos os meus planos de 2020, nomeadamente a cirurgia, que por sua vez estava minimamente cronometrada com todos os outros eventos que eu tinha planejado, dentre eles passar o fim de ano no brasil, estar com minha família, minhas amigas queridas que ainda estão lá, chorar na janela do ônibus vendo aquela loucura de tons de verde da vegetação abundante dos 300 km de estrada entre são paulo e varginha. mas, com a cirurgia adiada, o plano passou a ser aguentar mais sei lá quantos meses sentindo dor, e sabendo que, mesmo operando, ela nunca passaria 100%. essa não é propriamente uma queixa, até porque, vendo o cenário grotesco do mundo, acho que a pandemia tem me passado de raspão. só que me parece importante fazer essas contas com os próprios planos, expectativas, ansiedades, capacidade de lidar com o imprevisto, entender qual é o significado de um ano na nossa vida e quais são as coisas que escolhemos colocar nesse calendário inventado.
eventualmente, lá para junho ou julho, a secretária do médico me ligou e deixamos a cirurgia marcada para outubro. ainda precisaria fazer uns exames, lidar com o plano de saúde e esperar que a pandemia não piorasse. não fiquei propriamente ansiosa nem com medo de fazer a cirurgia, mas tive um pico de ansiedade entre junho e setembro porque trabalhei loucamente com medo de que o período de recuperação da cirurgia fosse mais longo do que o ideal. uma das outras coisas que o médico da anca repetiu muitas vezes foi o nome da cirurgia para resolver esse problema: artroscopia. ele dizia que é tudo muito simples, fazemos uns furinhos, esculpimos o osso, ficamos com 70 a 90% de melhoria na qualidade de vida, duas semaninhas de recuperação, mas temos aqui um porém: pode ser que os furinhos não sejam suficientes, pode ser que a gente precise abrir, fazer um talho na perna, daí são seis semanas de recuperação. e isso a gente só tem como saber na hora. e eu, na condição precária de freelancer, sem saber exatamente quando o trabalho chega e quando ele some, empilhei mais uma coisa que só tem como saber na hora e aceitei trabalhar muito mais do que a minha capacidade física já debilitada aguentava entre junho e setembro. não recomendo, embora esse seja um cenário em que escolha é um termo bastante relativo.
em setembro vimos essas buganvílias dando sinais de outono em tomar, uma mini-viagem possível antes da operação
chegou outubro e eu comecei a abrandar e a tentar me preparar psicologicamente para a cirurgia. vou deixar para contar essa etapa no mês que vem, primeiro porque não quero maçar ninguém com uma história comprida demais, segundo porque ainda preciso de um pouco de distanciamento para processar melhor o que veio a seguir. se você chegou até aqui e não achou tudo muito cansativo, obrigada! se quiser responder me contando que já era especialista nas perturbações da anca, vou ficar muito feliz, mas se, como eu, não conhecia nada disso e quiser manifestar sua ignorância sobre o tema, ficarei muito feliz também.
beijos grandes e até mês que vem,
mariana
Acho que temos uma genética que nos leva a essas coisas, fiz duas ressonâncias, estou com início de vários problemas na coluna e a pandemia também não me permitiu fazer nada a respeito. Agora estou indo em uma reumatologista para dar incio a um tratamento. Saudades 💓